sábado, 4 de outubro de 2008

Narciso e Narciso


Se Narciso se encontra com Narciso

e um deles finge
que ao outro admira

(para sentir-se admirado),

o outro

pela mesma razão finge também

e ambos acreditam na mentira.


Para Narciso

o olhar do outro, a voz

do outro, o corpo

é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.

E se o outro é
como ele

outro Narciso,

é espelho contra espelho:
o olhar que mira

reflete o que o admira

num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso

inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade

e assim

mais verdadeiro que a verdade.


Mas exige, o amor fingido,
ser sincero

o amor que como ele

é fingimento.


E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.

Assim amam-se agora
se odiando.

O espelho embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:

se torturam

se ferem

não se largam

que o inferno de Narciso

é ver que o admiravam de mentira.


(Ferreira Gullar
)


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