segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Ela cansou:

Helena tinha 22 anos, na época. Cabelos ruivos, lisos. Quilos a mais. Tinha sua vida, cheia de preocupações sobre nada. Seu emprego na firma de advocacia do tio, sua faculdade em vias de finalização, seu namoro de dois anos, sua família. Ela morava num bairro bom, tinha muitos amigos, gostava de dormir até tarde nos finais de semana. Como toda pessoa normal que se preze, nunca foi de negar um conforto. Tinha seus bons discos, milhares de filmes, travesseiro de penas, cama king-size.

Um dia, sem mais nem menos, voltando do trabalho e depois de passar na padaria, com seu tradicional saco-de-pão com três croissants de chocolate dentro como acompanhantes na poltrona de carona do carro, Helena cansou.

É, ela cansou. Quando dobrou a esquina e apertou no controle para abrir a garagem, tinha um carro estacionado ali na frente, trancando a passagem. Não que isso possa ser considerado um sinal de fim dos tempos, mas a verdade é que ha muito tempo ela dormia mal e pensava demais em coisas que não tinha controle.

Estacionou na rua mesmo, desceu do carro e entrou porta adentro. Não estava irritada e nem nervosa. Não iria descontar no irmão ou no cachorro, nem sequer os enxergava. Seus olhos estavam vendados. Ela temia que ao olhar no espelho sentisse uma ânsia incontrolável. Ela só sabia que tinha que tomar o banho dela, enrolar o cabelo, colocar a primeira roupa que visse pela frente e ir pra faculdade. Ela simplesmente não tinha mais tempo a perder cuspindo dragões pela boca.

Fez exatamente isso. Antes de sair de casa, bebeu um iogurte e comeu ferozmente seus croissants habituais, deixou um bilhete que voltaria mais tarde das aulas encima da mesa e foi.

Tem vezes na vida em que a gente sabe que algo se quebrou de uma forma impossível de colar os cacos novamente, e mesmo sabendo disso, não sabemos como agir exatamente. A gente quer ser tranqüilo, cabeça boa, relaxado. No fim, acaba criando em si mesmo esse monstro com doze cabeças, nervoso e ansioso, que mal consegue dar um passo após o outro sem checar o relógio e o pequeno manual de boas maneiras pra ver se esta fazendo a coisa certa.

Helena não queria mais fazer as coisas certas, parece que algumas ações tinham perdido a conveniência.

A verdade: não sabia mais o que a movia. Não era raiva, rancor ou repulsa. Antipatia, aversão… não. Mesmo assim, batia a lapiseira com força na classe e quebrou mais de uma vez a grafite. E nem sequer reparou. “Cansar não exige muito esforço, é só uma questão de ajustar o foco.”, disse uma amiga à ela na hora do intervalo, quando ela sutilmente comentou que estava esgotada.

No quarto período encontrou o namorado pelos corredores, ele comentou algo sobre o dia dele e ela não ouviu. Um zumbido escorregava pelos ouvidos dela, exercendo um bloqueio instantâneo. Marcaram de se ver no dia seguinte, mecanicamente como quem diz “o número dois, por favor” no Mc Donald’s. E ela assistiu à última aula, só de corpo presente, sua cabeça estava virada num jogo de montar de 5.000 peças.

Na volta pra casa, o som estava alto demais, quase bateu o carro. Um susto. Seguiu em frente, mas não queria, é, ela não queria voltar pra casa, colocar o pijama, checar emails, escovar os dentes, ler duas frases de um livro e cair no sono. Deu meia volta e rodou. Não se sabe bem se por dez minutos ou uma hora. Talvez duas, talvez três.

Desceu numa praça, bairro distante do centro da cidade. Sentou num dos bancos acabados de lá, encostou a cabeça numa árvore e nem havia pensado na possibilidade de estupro, ladrão, lobo mau. Baixou os olhos por instantes, assim, como fazem as pessoas que cansam.

Vinte minutos depois, entrou no carro e foi pra casa. Já passava das duas da madrugada, a família toda na sala com cara assustada, mas em silêncio, só o vento frio batia, quase gritava, na janela. Antes que alguém viesse perguntar alguma coisa, Helena foi pro quarto.

Sabe o que ela fez?

Dormiu.

Porque no dia seguinte tinha que acordar cedo e pensar novamente em trabalho, faculdade, família, namorado, amigos, cachorro. Ou em nada disso. Já estava tarde pra pensar em algo, e afinal, ao menos por um único dia na vida… Helena cansou.

[Pela manhã, já era outra. Ao mesmo tempo, era a mesma. Difícil explicar, mas estava mais leve do que nunca.]

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Preocupação demais em buscar os defeitos dos outros dá nisso. Só gera desgaste físico e mental. Não é fácil definir como plano de metas a ação “não olhar pra trás”. Não é fácil mudar. É mais acessível se decepcionar por toda e qualquer coisa que surja. Coisa que quando não surge a gente dá jeito de procurar e encontrar. E se não encontra, inventa. Com o passar dos anos a gente percebe que a maior verdade que existe é aquela que a gente conhece por conta própria, a nossa existência. O que a gente viveu nos últimos cinco minutos. Ou aquilo que pode, de alguma forma, ser mensurável. Falando assim, parece conversa fiada de quem têm pêlos no coração, mas não é. Até Helena cansou. Ela, que sempre fez questão de fazer tudo regrado, tudo por todos, pouco por ela. Imagina então se for falar da gente, poços ambulantes de egocentrismo. Porque um dia todo mundo cansa. O ideal é que a gente mude, ou mesmo provoque a mudança, antes que chegue esse dia. Assim como ela, que quase não notou, encarando como um exercício simples de tolerância e seguiu em frente no livro dos dias. É. Assim o efeito vai ser breve e indolor, como tudo deve ser. Ok, eu sei. Nada é como deveria ser.

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Agora… Helena, querida. Vem cá, vem. Senta aqui perto de mim e explica como é que se faz.

[...]

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